A fonte da saudade - Luiz Fernando Bettella

Quem diria que um dia seria possível ouvir qualquer música a qualquer hora. Quem diria que um dia não precisaríamos comprar, gravar ou armazenar músicas em meio físico, que poderíamos ouvir por streaming o que desejamos, quando e onde bem entendemos. Há quarenta anos eu duvidaria, há trinta, diria: vai perder a graça. Não perdeu. Para quem gosta de música, um infinito carrossel de emoções disponível na palma da mão não tem preço.

Hoje, você abre seu serviço de streaming de música, busca por Kleiton e Kledir e deixa a nostalgia te dominar, te encharcar, te embebedar com lembranças de um tempo mágico. Você lembra da primeira vez que ouviu Deu Pra Ti voltando para Porto Alegre cheio de vontade de reencontrar os amigos, cheio de planos de festas animadas com a turma, tomado de saudade da Redenção, da Oswaldo e do Bar João. Você viaja no tempo, volta ao passado e sente as mesmas sensações que sentia no início dos anos 80, quando era muito jovem e tinha um mundo inteiro a descobrir. Seu coração navega nas águas desse mar de emoções, voa pra lá do arco-íris revivendo aventuras e amizades que se foram. Você lembra das noites de São João, quando sonhava em pegar na mão de uma prenda bonita de vestido de chita, quando saia com bigode de rolha e chapéu novo em folha com muita esperança no futuro. Recorda de bobas paixões adolescentes e revive experiências insólitas do tempo em que passava da conta na bebida e seguia depois do 3º ou 4º copo.

Você está embriagado pelo passado quando o streaming te põe pra ouvir a inesquecível Nem Pensar; aquela com o legítimo baixo dos anos 80, forte, marcante como ferro em brasa, enfeitada pela flauta irreverente que transmite com rara fidelidade a sensação de leveza dos que saem de um namoro juvenil pronto para a vida, pronto para o próximo. E quando parece não haver mais emoções a serem sentidas, entra aquele incrível backing vocal feminino que faz correr um arrepio pela nuca. Quantas vezes você já disse eu ein, nem pensar frente a uma situação que a vida apresentou… Aí, você lembra de quantas coisas boas e ruins já viveu, olha para o passado e constata que tudo valeu a pena, que as boas experiências te fizeram bem, e que os naufrágios do destino te permitiram crescer; que nem piratas, nem borrascas, nem dragões te impediram de ser feliz. Aí, você se sente feliz por ter vivido tudo isso, sente saudade de um tempo de excessos e até mesmo de pequenas transgressões do universo adolescente onde ser feliz é tudo que se quer.

Ainda bem que a tecnologia evoluiu, que tornou nossa vida melhor, que hoje podemos reviver antigas emoções a qualquer hora, em qualquer lugar, ouvindo a trilha sonora da nossa vida. Ainda bem que essa fonte da saudade nem o tempo vai secar.